15 novembro, 2011

O JUIZ E O PANGARÉ

Artigo de Luiz Carlos Saldanha*
Dia desses estava na fila do um banco e ouvia a conversa de dois advogados. Um deles expressava o seu descontentamento com uma certa magistrada lotada numa comarca do interior, sob a alegação de que, além de não receber os advogados para despachar medidas urgentes, também não tinha o hábito de decidir os feitos a seu cargo. O outro advogado, concordando com seu colega sobre as dificuldades de conseguir uma decisão com a dita juíza, acrescentava: “e ainda instalou na comarca um centro de conciliação que é justamente para não enfrentar os processos que estão embolorando nas prateleiras de seu cartório.” Pensei em interpelar aqueles advogados para saber de quem se tratava, mas logo chegou a minha vez de ser atendido e isso não foi possível.

Já estava para sair do fórum quando fui abordado por um velho e conhecido advogado, o qual veio em minha direção e já foi descarregando: “doutor Saldanha, naquele tempo em que o senhor era escrivão, os juízes respeitavam mais os advogados, decidiam os processos com mais rapidez e sempre recebiam os advogados para despachar aquilo que era urgente. Hoje está tudo diferente. Aqui em Campo Grande, tem juiz que não despacha, não decide e ainda não recebe os advogados nem mesmo para ouvir os seus reclamos.” Tentei sair daquela incômoda situação, quando ele me pegou pelo braço e foi acrescentando: “O senhor lembra do doutor Athayde Nery de Freitas, o pai do doutor Adilson Viegas que no nosso meio é conhecido como “capacete” e, também, pai daquele “guerrilheiro”, o vereador Athaydinho?” É claro que lembro doutor - respondi eu na esperança de que ele soltasse logo do meu braço. Ledo engano, porque ele emendando a “galopera” (polca paraguaia que quase não tem fim) e foi dizendo: “o senhor lembra do doutor Milton Malulei, do doutor Rui Garcia Dias, do doutor José Nunes da Cunha, do doutor Assis Pereira da Rosa, do doutor Nildo de Carvalho, do doutor Amilcar Silva, do doutor Manoel Veludo Teixeira, do doutor Wolney de Oliveira e o senhor lembra, também, do doutor Sydney Nunes Leite, aquele que tinha uma memória fotográfica?” Respondo: “ Claro que eu lembro doutor e agora, por favor, solte o meu braço que eu tenho um cliente me esperando no escritório”. Ao soltar o meu braço, conclui o seu reclamo dizendo: “aqueles é que eram verdadeiros juízes, não tinham medo de falar com advogados, despachavam e decidiam os processos “num piscar de olhos” e ainda tinham tempo de tomar um cafezinho na cantina da dona Dina no fórum da 26 de agosto.”

Resolvi então perder um pouco mais de tempo para esclarecer ao velho advogado que as coisas tinham mudado. A demanda de processos daquele tempo não chegava a 10% do que é hoje.

Por outro lado, os juízes que o senhor citou, todos do tempo em que o fórum ficava na Rua 26 de Agosto, como aliás, o senhor já disse, quando ingressaram na magistratura eram advogados experientes e portanto não tinham grandes dificuldades para se adaptar no exercício da magistratura. Hoje doutor, a magistratura é composta de jovens que, obviamente, em que pese serem bem preparados, demoram um pouco mais para amadurecer na profissão, mas é certo que nem por isso, deixam de ser excelentes magistrados e eu não tenho notícia de nenhum que se negue a receber advogados em seu gabinete, isto para despachar quando o caso for efetivamente urgente. Ao contrário, tenho ouvido falar de muitos abusos praticados por advogados mal preparados para o exercício da profissão e é até possível que esses abusos e em alguns casos, inclusive até com desvio da conduta ética profissional, estejam fazendo com que, alguns Juízes se afastem dos advogados, digamos assim, em legítima defesa. Dito isso, fui saindo e o velho advogado ainda continuava na sua tese: “o senhor está defendendo os juízes porque o senhor foi um deles.” Dei meia volta e já tinha no pensamento que “a melhor defesa é sempre o ataque”, mas respirei fundo e ao invés de atacar, apenas perguntei:- o senhor sabia que no Tribunal de Justiça funciona a Ouvidoria do Judiciário que é exercida por um desembargador e que está preparada para receber as reclamações, não só dos advogados, mas também de qualquer pessoa, contra abusos de Juízes e servidores? É claro que eu sei, respondeu o advogado, mas não funciona, porque quando a gente faz uma reclamação, pedem informações e mandam o nome do advogado para o reclamado e aí a coisa fica pior. Dia desses reclamei contra um Juiz que não decide processo nem com “mandinga” e o resultado foi desastroso, porque ele ao saber da reclamação, passou a me hostilizar nas audiências. Eu já estava irritado com aquele advogado e quando eu comecei a falar sobre o Conselho Nacional de Justiça, apareceu ali um salvador da pátria que tinha ouvido uma parte da conversa e vendo o desconforto que eu estava passando, pôs a mão no meu ombro e juntos fomos saindo. Já na frente de meu escritório, no edifício Trade Center, paramos para nos despedir e ele me disse: “não queria me meter, doutor Saldanha, mas o colega que estava lhe interpelando lá dentro do fórum, tem parcela de razão.” – Como assim doutor? O senhor sabe que eu sou da região de Paranaíba e lá naquelas bandas tinha um Juiz que não recebia os advogados nem mesmo com “catiça de gato”.

Foi ai que me veio à mente a história que me contou o meu amigo Sabá, um oficial de justiça lá da Comarca de Nova Andradina, envolvendo um juiz que também não recebia, não falava e nem olhava para os advogados. Se a história é verdadeira, não sei, mas lá vai ela:

Nova Andradina foi a minha primeira Comarca. Ali tive oportunidade de conhecer juízes, advogados, promotores e serventuários extraordinários. Foram eles que me ajudaram nos primeiros passos na magistratura.

Durante o dia, o trabalho era o meu entretenimento e durante a noite, as histórias que me contava o Sabá, um lendário oficial de justiça. Certa noite, pedi a ele que me contasse aquela história do juiz que não recebia os advogados para despachar, nem com “reza brava”.

Meu amigo Sabá deu um largo sorriso e eu percebi então que essa era a sua história preferida. Foi logo tomando uma Providência (nome de uma pinga cuja garrafa estava ao lado de sua cadeira) e daí foi contando que: Certo Juiz que havia passado pela Comarca, não recebia advogados, não falava e nem olhava para os mesmos. Os advogados então passaram, também, a tomar providência, mas não daquela, cuja garrafa estava ao seu lado. Reclamavam, faziam abaixo assinado, faziam representação na corregedoria e nada, a postura no magistrado era sempre a mesma. Assim foi até que um certo corregedor, ao passar pela comarca, reunindo-se com os advogados, tomou conhecimento daquele fato, e procurou o magistrado para resolver o problema. – “o senhor tem que atender aos advogados, quando a medida for urgente. O advogado tem o direito de despachar diretamente, independentemente de hora marcada. O senhor tem que rever a sua posição e revogar a portaria.” O Juiz replicava: “mas corregedor, se eu abrir a guarda para esses advogados, não vou poder trabalhar, vai ser um entra e sai de advogados na minha sala, isto porque, cada um deles acha que o seu processo é mais urgente e é por isso que eu não recebo, não falo e nem olho para eles”. O Corregedor então sentenciou: “despachar diretamente com o juiz é direito consagrado na lei e isso o senhor tem que permitir, sob pena de responder a processo administrativo. Agora, falar e olhar para o advogado é questão de urbanismo e educação o que pode ser relevado.” O Juiz então, sem revogar a portaria, passou a permitir que os advogados, em casos de urgência, adentrassem a sua sala para despachar diretamente com ele. Todavia, lembrando as palavras do Corregedor, não falava e nem olhava para o advogado.

Passado algum tempo e como a situação persistia, os advogados se reuniram na casa do mais antigo e ali, um deles teve a brilhante ideia de fazer um cartaz com os dizeres: “sou advogado, quero despachar diretamente com Vossa Excelência”, pregar num “pangaré” que vivia adentrado nos corredores da repartição e empurrar o bicho para dentro da sala do magistrado. Planejado o embate e preparado o ataque, partiram para a sua execução. Todos os advogados tinham assinado um pacto de solidariedade, nenhum podia recuar. Tinha que ser “um por todos e todos por um” tal qual no filme Os Três Mosqueteiros.

Na hora combinada lá estavam todos os advogados da comarca e dos arredores. Já era final de expediente, por volta das 17 horas, cavalo preparado, cartazes pregados com vários dizeres, tais como: “um olhar não ofende”, outro dizendo: “ trate os advogados com urbanidade e respeito e exija reciprocidade” e bem na testa do pobre do pangaré, um com os dizeres: “sou advogado, olhe para mim, fale comigo, não seja mal educado”. O matungo foi empurrado para dentro da sala e quando o Juiz menos esperava, o cavalo foi entrando parando bem na frente da mesa do magistrado. O Juiz percebendo que alguém tinha entrado na sua sala, imaginando que se tratasse de um advogado, sem levantar a cabeça, dizia: “ pode falar, doutor.” Como o bicho não falava nada, apenas balançava a cabeça, fazendo barulho com os cartazes que trazia pregado na sua cabeça e pelo corpo inteiro. Novamente o magistrado sem levantar a cabeça e já meio irritado, dizia: “fale advogado, qual é o seu problema, tem alguma petição urgente para despachar?” E nada do cavalo falar. Foi quando o pobre do cavalo, sem poder enxergar direito, em face dos cartazes que trazia pregado na cabeça, derrubou um copo que estava sobre a mesa, derramando a água no processo que o juiz examinava naquele momento. O Juiz então erguendo a cabeça, viu o velho pangaré com os cartazes e assustado começou a gritar: “socorro, tirem esse bicho daqui”. O cavalo, com os gritos do magistrado, se assustou, escorregou no assoalho de madeira e foi por cima da mesa, fazendo com que a mesma empurrasse o magistrado que não parava de gritar, contra a parede. Foi aí que todos os advogados da comarca adentraram e o mais antigo então perguntou: “Vossa Excelência pode falar com os advogados da comarca? O Juiz tomado de pavor respondeu: “Está revogada aquela portaria, daqui pra frente vou falar, vou olhar e receber todos vocês em qualquer dia, em qualquer lugar e sem hora marcada, mas tirem esse bicho daqui, pelo amor de Deus.”

Entregaram ao Juiz uma cópia da Lei 4.215 de 1.963, onde os artigos 68 e 69 estavam sublinhados, com os dizeres:
“No seu ministério privado, o advogado presta serviço público, constituindo, com os juízes e membros do Ministério Público, elemento indispensável à administração da justiça.”


“Entre os juízes, de qualquer instância, e os advogados, não há hierarquia, nem subordinação, devendo-se todos consideração e respeito recíprocos.”


O tempo passou e aquele magistrado que era arrogante e se achava melhor do que todo mundo, que não recebia, não falava e nem olha para os advogados, passou a ser um homem respeitador. Foi respeitado e admirado pela classe jurídica, tanto que, quando deixou aquela Comarca, promovido por merecimento, recebeu dos advogados uma placa com os seguintes dizeres: “NOBRE MAGISTRADO: RECEBA ESTA COMENDA COMO FORMA DE AGRADECIMENTO PELO CARINHO, RESPEITO E PELA FORMA HUMANA COMO SEMPRE TRATOU OS ADVOGADOS DESTA COMARCA.”

Moral da história: Muitas vezes é preciso um pangaré para amansar uma fera.

Se na sua comarca existir um juiz que não recebe o advogado para despachar medidas urgentes, coisa que eu duvido, procure a Ouvidoria do Judiciário e depois o CNJ e se ainda assim persistirem os sintomas, então faça como os advogados de Nova Andradina, procurem um pangaré e...

* Juiz de Direito Aposentado e Advogado Criminalista.

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